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‘Médico perguntou se eu queria saber sexo do bebê para pensar no nome’, diz vítima de estupro que teve aborto negado em 4 hospitais de SP

A consulta aconteceu na terça-feira (25), no Hospital Municipal do Campo Limpo, na Zona Sul da capital, quando a equipe do hospital se recusou a fazer a interrupção da gravide como prevê a lei.

“Ele (médico) me perguntou se eu queria saber o sexo do neném. Mesmo ele sabendo que era de uma que era de violência sexual, ele falou: mas você não quer saber?’ Assim você já vê um nome, caso você não consiga (fazer o aborto). E eu falei: ‘não, não quero saber.’ E mesmo assim, ele falou. Foi muito difícil”, conta.

A identidade da paciente não vai ser revelada para protegê-la.

Na tarde de quinta-feira (27), a Justiça de São Paulo determinou que a Prefeitura de SP, no prazo máximo de 48 horas, indique local e agende uma data de atendimento para a realização do aborto legal da paciente.

Ainda segundo a decisão, concedida em caráter de urgência, em caso de descumprimento, a prefeitura estará sujeita a multa diária de R$ 50 mil.

“Eu perguntei se tinha algum outro hospital que eles pudessem indicar e eles falaram que não. Aqui em São Paulo não tem nenhum hospital que faça e só, não falaram mais nada”, relatou a mulher.

Atualmente, é permitido a realização do aborto legal, sem prazo da idade gestacional, em três circunstâncias no Brasil: quando a mulher engravida após ser vitima de violência sexual, quando é confirmada a anencefalia do feto ou quando há risco de vida à mãe.

O g1 entrou em contanto com Secretaria Municipal de Saúde e aguarda retorno.

4 tentativas de realizar o aborto legal em SP

A paciente contou para a GloboNews que descobriu a gestação após perceber mudanças no corpo e que precisou de um tempo para tomar coragem e pedir ajuda. Por duas semanas, ela afirma que recebeu quatro negativas para a realização do aborto legal, presencialmente ou por telefone.

Em 14 de junho, a mulher procurou o Hospital da Mulher, unidade estadual de referência no atendimento de vítimas de violência sexual. Ela fez exame de sangue e ultrassonografia e foi informado à ela que sua idade gestacional era de 24 semanas, o que impediria o procedimento na unidade.

Em 17 de junho, a paciente retornou para o hospital para consulta com a assistente social e psicóloga, quando foi informada novamente que o aborto não seria feito e que ela não conseguiria fazê-lo no estado de São Paulo.

“A assistente social me disse que em São Paulo eu não ia conseguir fazer porque os hospitais estavam se negando, mesmo eu tendo direito em lei. Eles estavam se negando a fazer. A ginecologista também reforçou que é muito difícil fazer em São Paulo e como estava no meio daquela votação do novo projeto de lei, aquilo estava dificultar mais ainda. Então eu já sabia, pelo que elas estavam falando, que ia ser um pouco difícil… Mas eu não imaginava o quão difícil seria, o quão difícil está sendo”, relatou a mulher.

Em 18 de junho, ela contatou o Hospital Municipal Tide Setúbal, na Zona Leste da cidade, por telefone, e teve o atendimento negado novamente, antes mesmo da consulta presencial.

“Conversei com a assistente social e ela. me agendou para o próximo dia, pro dia seguinte. Ela já falou: ‘vamos marcar você pra vir amanhã, tá bom? Eu já tinha falado para ela as semanas que eu estava, eu já tinha explicado feito o relato para ela. Porém, 15 minutos depois da ligação, eles me retornaram, falaram que não iam conseguir me atender porque eles estavam cumprindo uma ordem de não fazer o procedimento e que era necessário aguardar a nova votação do projeto de lei”, afirmou.

Uma nova tentativa foi feita por telefone com a equipe do Hospital Municipal do Tatuapé, também na Zona Leste, e a informação passada foi que não havia profissionais disponíveis para o procedimento do a aborto legal.

No dia 20 de junho, a Defensoria Pública oficiou a Prefeitura de São Paulo, relatando o caso e recomendando que o Hospital Municipal do Campo Limpo disponibilizasse de forma imediata o atendimento de saúde da vítima para a realização do aborto legal.

No dia 25 de junho, a paciente foi atendida no Hospital Municipal do Campo Limpo e teve o aborto legal negado pela segunda vez. Um relatório entregue pela equipe médica do hospital cita que a paciente estava com 26 semanas e 3 dias, de acordo com uma ultrassonografia feita no dia 21 de junho, e nega o atendimento.

Além disso, a mulher conta que foi sugerido que a paciente prosseguisse com a gestação.

“A psicóloga me disse: ‘se você não conseguir (fazer o aborto legal), você sabe que você vai ter que criar. Então seria mais fácil você já começar um pré-natal?’ E eu falei ‘não’, porque o que eu estou pedindo é algo que eu tenho direito diante a lei, então eu não quero pensar que eu não vou conseguir, porque eu estou atrás de um direito meu. Somente não sabia que era tão difícil, né? Não é só o meu caso, eu imagino que tenha tantos outros casos que também nesse momento que também estão sendo difíceis. E também há muita desinformação”.

O relatório diz que, pelo fato de a mulher estar com mais de 22 semanas de gestação, seria necessária a ação de medicina fetal para a indução de assistolia fetal, “serviço este não oferecido pelo hospital”.

O documento entregue no Hospital Municipal do Campo Limpo e obtido pela GloboNews diz que a paciente recusou fazer “pré-natal de alto risco” e “acompanhamento psicossocial e, sem indicar ou encaminhá-la para outra unidade municipal que pudesse realizar o aborto legal como determinou a Justiça de São Paulo desde fevereiro, o hospital formalizou no relatório que a orientação era que fosse procurada a Defensoria Pública, para que fosse “assegurado o melhor desfecho possível a esta situação”.

“Foi muito frustrante, eu saí de lá chorando. Eu só estou querendo uma coisa que eu tenho direito por lei, eu não quero nada mais do que isso. O que eu passei, eu não quero que outra pessoa passe também não quero que outra pessoa escute isso. Porque já é um caminho muito, muito difícil de ser percorrido. Então eu queria ser acolhida, só isso é muito difícil”, lamentou.

A paciente agora aguarda a resposta da Prefeitura sobre o local de atendimento, como determinou a Justiça. “Pra mim é uma esperança. Eu espero muito que dê certo”.

A Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo respondeu os questionamentos da reportagem:

“A Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES-SP) segue todas as previsões legais e normativas federais vigentes relativas à interrupção da gravidez, visando garantir a segurança, o acolhimento e o atendimento humanizado às mulheres vítimas de violência sexual, além das demais situações previstas em lei”, informa trecho da nota da pasta estadual de Saúde.

“Em casos de gestações acima de 22 semanas, o Hospital da Mulher segue protocolo e referencia as grávidas via Cross (Central de Regulação da Oferta de Serviços de Saúde) para local com maternidade e serviço de UTI neonatal, em garantia ao atendimento necessário”, comenta a secretaria de Saúde do Estado.

Questionamentos na Justiça

Na segunda-feira (24), a Prefeitura de São Paulo havia informado ao Supremo Tribunal Federal (STF) que estava realizando os procedimentos na cidade e apresentou uma relação de 68 abortos legais feitos no município este ano – nenhum deles após uma decisão do STF.

Duas decisões judiciais atualmente em vigor asseguram o direito da mulher a realizar o aborto legal na cidade de São Paulo, independentemente se a idade gestacional já ultrapassou o período de 22 semanas.

  • Uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo obriga a Prefeitura da capital a fazer o atendimento e o procedimento em 4 hospitais da cidade. A decisão foi dada em fevereiro deste ano, após o fechamento da unidade de referência na Zona Norte, o Hospital Vila Nova Cachoerinha
  • Uma decisão em caráter liminar do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que determina que os médicos e hospitais realizem o aborto legal após 22 semanas, depois de suspender uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proibia o procedimento de assistolia fetal.

A assistolia fetal consiste em uma injeção de produtos que induz à parada do batimento do coração do feto antes de ser retirado do útero da mulher. O procedimento é recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para casos de aborto legal acima de 22 semanas.

A resolução do CFM, publicada em 3 de abril deste ano, proibia médicos de realizarem a assistolia fetal em “casos de aborto previsto em lei oriundos de estupro”. Mas em 17 de maio, Moraes suspendeu a aplicação da resolução e determinou que os hospitais de referência para aborto legal mantenham a realização dos procedimentos.

No caso desta paciente que teve o aborto legal negado pelos hospitais na cidade de São Paulo, houve o descumprimento das duas determinações, mesmo com ofícios enviados pela Defensoria Pública alertando sobre o direito da paciente em realizar procedimento.

Hospitais de SP e o aborto legal

Apesar de o questionamento do ministro abordar o aborto após violência sexual, a Prefeitura respondeu citando abortos previstos em lei.

A resolução do CFM, publicada em 3 de abril, proibia médicos de realizarem a assistolia fetal em “casos de aborto previsto em lei oriundos de estupro”.

Segundo a Prefeitura, os abortos legais foram realizados em janeiro, fevereiro e abril, e nenhum foi feito após a suspensão da resolução:

  • Hospital Tide Setúbal: 09/01/2024 – 26 semanas de gestação
  • Hospital Mario Degni: 19/02/2024 – 30 semanas e 1 dia de gestação
  • Hospital Mauro Pires da Rocha: 29/02/2024 – 26 semanas
  • Hospital Tide Setúbal: 26/04/2024 – 23 semanas

O Vila Nova Cachoerinha não entrou na relação, já que o procedimento continua suspenso no local.

Suspensão

Como a GloboNews e o g1 mostraram, desde que o aborto legal foi suspenso no Hospital Vila Nova Cachoeirinha, em dezembro de 2023, até então referência no procedimento acima de 22 semanas de gestação na cidade de São Paulo, a Prefeitura foi obrigada, pela Justiça, a oferecer o procedimento em outros hospitais.

O serviço foi suspenso pela prefeitura em dezembro de 2023, sob a justificativa de aumentar a capacidade para a realização de cirurgias no local. A Justiça determinou que o serviço voltasse a ser oferecido três vezes, mas a Prefeitura recorreu de todas as decisões e manteve a suspensão.

Agora, a administração municipal diz que o aborto legal é feito em quatro hospitais da cidade: Hospital Municipal Dr. Cármino Caricchio (Tatuapé); Hospital Municipal Dr. Fernando Mauro Pires da Rocha (Campo Limpo); Hospital Municipal Tide Setúbal e Hospital Municipal e Maternidade Prof. Mário Degni (Jardim Sarah).

Moraes pediu que a Prefeitura prestasse esclarecimentos no dia 19 de junho, ele menciona a reportagem na decisão.

“Conforme noticiado pela imprensa, a partir de nota divulgada pela Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, há incerteza quanto ao fornecimento pela rede pública de saúde de acesso ao aborto legal, inclusive por meio do procedimento de assistolia fetal, nas hipóteses recomendadas.”

Atendimento legal

Segundo apuração da GloboNews, uma mulher, vítima de violência sexual, primeiramente procurou o Cachoeirinha para fazer o procedimento previsto em lei.

Mas lá, ela foi encaminhada para o Hospital Municipal Dr. Cármino Caricchio, no Tatuapé, onde foi comunicada que não havia equipe para realizar o procedimento. Com isso, foi encaminhada para o Hospital da Mulher, antigo Pérola Byington, no Centro de São Paulo, do governo do estado, onde novamente teve o procedimento negado.

A justificativa foi a de que o hospital só faz o aborto legal com gestações de até 20 semanas. No dia 8 de maio, quando a paciente foi atendida, ela estava com 21 semanas e 3 dias de gestação.

Em outro encaminhamento, ela foi enviada para o Hospital do Campo Limpo, onde no dia 13 de maio disseram que ela, “provavelmente”, teria o procedimento negado. Antes de ir para a consulta, no dia da 14, a paciente procurou a Defensoria Pública para pedir orientação, que a informou que apesar da resolução do Conselho Federal de Medicina, que impedia o procedimento com assistolia fetal, ela poderia fazê-lo, o que foi negado justamente com base na resolução. No dia da última negativa, ela estava com mais de 22 semanas de gestação.

Abalada, ela então decidiu voltar para o interior de São Paulo e informou que entraria em contato com a Defensoria, que ofereceu a possibilidade de judicialização do caso, mas ela não retornou. No dia 17 de maio, com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que derrubou a resolução do CFM, a Defensoria procurou a paciente, mas não obteve retorno. Não se sabe se ela conseguiu fazer o aborto.

Em entrevista à GloboNews, Raphael Câmara, conselheiro do CFM, e relator da resolução, afirmou que “a assistolia fetal é um procedimento cruel e desumano, que tortura. Estamos falando de bebês acima de 22 semanas, já tem todo o circuito neurológico da dor formado.”

A outra paciente, também com cerca de 20 semanas de gestação, teve o aborto negado em três hospitais: Hospital da Mulher, Campo Limpo e Tide Setúbal. Só conseguiu fazer o procedimento em outro estado.

O Ministério das Mulheres, por meio de sua Ouvidoria das Mulheres, afirmou à GloboNews “que tem acompanhado com preocupação as notícias veiculadas na imprensa sobre o fechamento do serviço de aborto legal do Hospital Maternidade Vila Nova Cachoeirinha, assim como a exigência de ‘ouvir os batimentos cardíacos do feto’ – um procedimento inconstitucional e desumano que revitimiza a mulher vítima de estupro, portanto, uma violência institucional. (leia a nota completa abaixo).

Segundo a ONG Vivas, hoje, no Brasil, só três cidades fazem aborto legal após 22 semanas sem ordem judicial: Uberlândia, Recife e Salvador. Desde o fechamento do Cachoeirinha, esses três locais atenderam 20 mulheres de outros estados.

Se considerado o aborto legal como um todo, sem restrição de semanas, só 108 cidades do país, ou 1,94% dos municípios, fazem o serviço.

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